As iniciativas legislativas elaboradas pelos diferentes partidos com assento parlamentar e que abordam a questão da descentralização do Estado podem gerar mudanças no sector do Património Cultural, mesmo que não existam nas referidas iniciativas maiores detalhes sobre o que se pretende no que concerne à Cultura. Entretanto, ressaltamos que o problema estrutural do nosso sector, isto é o subfinanciamento da Cultura, não é tocado no presente debate. Sem enfrentarmos verdadeiramente esta situação de falta de verbas para o Património Cultural serão repetidos casos lamentáveis como a vandalização de um dos painéis com gravuras rupestres do Parque Arqueológico do Côa, fruto da falta de vigilância, ou como o estado de abandono que se encontra o Património Náutico e Subaquático, na iminência de ser despejado e sem qualquer perspetiva para onde vá.

Não obstante, passamos a expor os aspetos que julgamos pertinentes. Uma das atribuições da DGPC é a fiscalização dos trabalhos arqueológicos, atividade esta que permite garantir a salvaguarda dos bens arqueológicos identificados. Tal atribuição é assegurada fora da unidade territorial de Lisboa e Vale do Tejo pelas Direções Regionais de Cultura. Neste sentido, a possível passagem de atribuições das DRC’s para as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) guarda diversos problemas. Primeiramente, aponta para o que julgamos ser uma falsa descentralização, já que as CCDR’s não reportam a qualquer entidade com membros eleitos pelos cidadãos no âmbito regional. Deste modo, falham em aproximar o Estado e o Cidadão. Por outro lado, fundem uma entidade especializada a uma outra de natureza diversa e mais abrangente. Cabe aqui ressaltar que nos últimos anos os diferentes governos têm posto em prática uma política de fusões de institutos, que tem resultado num enorme enfraquecimento do Estado no sector do Património Arqueológico. Posto isto, ressaltamos que a fusão das DRC’s às CCDR’s nem democratiza, nem aumenta a eficácia das primeiras.

Além disto, não nos parece claro qual seria a articulação entre as CCDR´s e a DGPC, e mesmo que papel restaria a esta última. Lembramos ainda que as DRC’s também são responsáveis pelo depósito do espólio arqueológico, e igualmente pela salvaguarda da documentação produzida nas intervenções arqueológicas. A ligação entre as Direções Regionais e a DGPC é fundamental para o acesso à informação resultante dos trabalhos arqueológicos, concretamente através do Portal do Arqueólogo, que é uma base de dados acessível através da internet e que congrega dados sobre sítios e trabalhos em todo o país. Uma fusão das DCR’s e das CCDR’s garantiria a disponibilização equitativa dos dados oriundos das diferentes regiões do país? Ainda mais sabendo de antemão da atual escassez de técnicos para a realização deste trabalho?

Também nos preocupa a passagem da gestão de Património atualmente sob alçada da DGPC para as Autarquias. Neste caso lembramos de imediato a necessidade de reforço de meios que seriam necessários para empreender a tal alteração. Ainda mais tendo em conta que os próprios meios que a DGPC tem atualmente não são suficientes para a conservação e divulgação de uma parcela dos edifícios e sítios com este enquadramento. Num contexto como este, alertamos para o perigo de que uma passagem da gestão de monumentos para as Autarquias possa significar o abandono dos referidos monumentos ou mesmo a cedência a privados. Neste último caso, o acesso das populações aos bens patrimoniais pode ficar seriamente comprometido, o que pode ocorrer igualmente com a criação de empresas municipais que façam a gestão dos monumentos.

Reforçamos que qualquer passagem de atribuições deve ser seguida por uma transferência de meios que permitam a execução plena das atribuições do equipamento ou bem patrimonial em questão, especificamente há a necessidade da existência de trabalhadores especializados no âmbito do património arqueológico. Não obstante, os direitos dos trabalhadores afetos às mudanças devem ser garantidos na sua totalidade. Por outro lado, devem ser criados meios de fiscalização do processo de descentralização, de modo a que seja salvaguardada a devida passagem de meios. Não é demais lembrar o caso do Parque Arqueológico do Côa, que transitou da alçada da DGPC para a Fundação Côa Parque. Neste processo faltaram verbas antes garantidas, o que resultou em enormes dificuldades financeiras, com reflexos nas vidas dos trabalhadores e, à jusante, na já citada perda irremediável de um painel deste Património Mundial.

Portanto, parece-nos que o modelo de descentralização proposto pode gerar problemas para a salvaguarda, conservação, investigação e divulgação do Património Arqueológico, sobretudo quando não vemos garantidos os meios necessários para tais ações. Num âmbito particular, notamos um acentuado perigo na eventual fusão entre DRC’s e CCDR’s, que certamente retiraria a especificidade das Direções Regionais de Cultura, e poderia resultar a curto prazo numa diminuição do orçamento para o Património Arqueológico, o que se verificou nas fusões que extinguiram o Instituto Português de Arqueologia (IPA), e depois o IGESPAR. Por fim, ressaltamos que somente com um reforço do investimento na Cultura é possível solucionar os problemas graves que o sector do Património Cultural sofre atualmente.